O caso em que… o esclarecimento deveria ter sido pedido e (se calhar) não foi!
Num concurso para a execução de uma empreitada de obras públicas, um concorrente apresentou, em cumprimento da exigência prevista no programa do procedimento e com a sua proposta, uma memória descritiva e justificativa do modo de execução da obra.
A dita memória descritiva e justificativa com o modo de execução dos trabalhos deveria estar alinhada com o mapa de quantidades e em relação com as equipas e correspondentes rendimentos, plano de trabalhos e plano de equipamentos, como é, aliás, corrente e vulgar neste tipo de procedimentos.
A entidade adjudicante convocou a apresentação, pelos concorrentes, da referida memória para especificação dos aspetos técnicos relacionados com o plano de trabalhos, justificando o escalonamento e calendarização das atividades, medidas relativas aos condicionamentos existentes e modos de os evitar, bem como medidas a implementar no estaleiro.
A memória descritiva e justificativa que acompanhou a proposta do concorrente retratou desconformidades em relação a alguns dos materiais exigidos em caderno de encargos. Porém, na lista de preços unitários, o concorrente procedeu à correta indicação de todos os materiais previstos em caderno de encargos.
Com isto, o Júri viu-se confrontado com duas declarações autónomas na proposta suscetíveis de se contradizerem, ficando a dúvida relativamente à vontade real e efetiva do concorrente.
Em termos de interpretação da declaração negocial, qualquer declaratário médio colocado na posição do real declaratário que se visse confrontado com essas divergências ficaria na dúvida sobre se o concorrente se propunha executar os trabalhos de acordo com o caderno de encargos – conforme genericamente declarou na declaração de aceitação a que se refere a alínea a), n.º 1 do artigo 57.º do Código dos Contratos Públicos -, ou se antes se propunha executar aqueles trabalhos utilizando os tipos de material que, em concreto e especificamente, identifica na memória descritiva e justificativa.
Por outro lado, tendo em conta a lista de preços unitários, qualquer declaratário médio ficaria na dúvida se, não obstante o concorrente ter indicado na memória descritiva e justificativa que em relação a certos itens colocaria materiais diferentes dos previstos no caderno de encargos, os iria efetivamente colocar, porquanto na lista de preços se referia aos materiais indicados no referido caderno de encargos e não àqueles outros.
Esta contradição não é superada pela natureza genérica da declaração do Anexo I ao Código, apresentada ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 57.º, sobretudo porque confrontada com uma declaração específica e concreta – a da memória descritiva e justificativa – que não pode deixar de prevalecer.
A jurisprudência e a doutrina defendem que a declaração genérica de aceitação do caderno de encargos não permite “compensar” o incumprimento especifico das exigências técnicas quanto a certos materiais a usar em obra exigidas em caderno de encargos, na medida em que na interpretação de declarações negociais, a declaração especial prevalece sobre a geral, pelo que a declaração de aceitação não pode cobrir desconformidades especificas com as peças do procedimento- as quais precisamente desmentem essa aceitação e derrogam nesse concreto aspeto contratual
Neste caso – como sublinha o Supremo Tribunal Administrarivo – impõe-se ao júri do procedimento que, nos termos do artigo 72.º, n.º 1 do Código dos Contratos Públicos, solicite esclarecimentos ao concorrente.
Com efeito, sem a clarificação do concorrente, o Júri não pode concluir que a proposta da concorrente não enferma de qualquer causa de exclusão, dando prevalência à lista de preços unitários e à declaração de aceitação do Anexo I, desconsiderando a memória descritiva e justificativa.
Isto sobretudo se não resultar da conjugação daqueles documentos, sem mais, estar-se perante um erro de escrita ou de cálculo contido na proposta, que nos termos do n.º 4 do artigo 72.º do Código dos Contratos Públicos, lhe permitisse a sua retificação oficiosa.
«A correta interpretação do disposto no artigo 72.º do CCP, mormente, da norma do seu n.º 1, força que se considere incluído no objeto dos esclarecimentos o suprimento pelo concorrente de uma eventual contradição entre documentos que integram a proposta relativamente a um termo ou condição da proposta que não seja suscetível de ser retificado oficiosamente, o que sucederá, quando, como na situação em análise, dos documentos que constituem a proposta não se possa concluir que a concorrente incorreu num lapso ou erro de escrita manifesto, e desde que, num juízo de prognose se conclua que o pedido de esclarecimentos não constitui uma possibilidade para a concorrente alterar a sua proposta no sentido de nela incluir atributos que não se pudessem considerar já como integrantes da proposta inicial, de modo a que daí não resulte a violação de nenhum dos princípios nucleares da contratação pública, como os da concorrência, da transparência, da igualdade de tratamento e da estabilidade da proposta.»
Caso extraído da apreciação do Supremo Tribunal Administrativo disponível aqui.
