O caso em que… o esclarecimento não deveria ter sido pedido e… foi!
O caderno de encargos integrado num concurso para a execução de uma empreitada de obras públicas prescrevia, nas respetivas cláusulas técnicas, a responsabilidade pelos encargos associados aos fornecimentos em redes provisórias de energia e água à obra, nos termos seguintes:
O empreiteiro deverá construir e manter em funcionamento as redes provisórias de águas, esgotos de energia elétrica e de telecomunicações que satisfaçam as exigências da obra e do pessoal.
A manutenção e a exploração das redes provisórias, bem como as diligências necessárias à obtenção das respetivas licenças, são de conta do empreiteiro, por inclusão dos respetivos encargos nos preços por ele propostos no ato do concurso.
Nessa medida, o caderno de encargos estipulou como condição contratual, isto é, como aspeto da execução do contrato não submetido à concorrência, que todos os encargos com as redes provisórias, incluindo luz elétrica e fornecimento de água, seriam da conta do empreiteiro adjudicatário e que, como tal, os respetivos encargos deveriam estar contabilizados nos preços unitários compreendidos na lista de preços unitários a acompanhar a proposta.
Porém, o concorrente inscreveu na memória descritiva e justificativa da obra, em contravenção com a dita asserção do caderno de encargos, que o fornecimento de água e energia correria por conta do dono da obra.
O Júri superou a evidente contradição entre a exigência do caderno de encargos e a vontade declarada pelo concorrente na proposta através da formulação de um pedido de esclarecimentos, no qual solicitou ao concorrente que procedesse «à devida clarificação» daquela «afirmação acima mencionada, de acordo com os termos e condições descritas no caderno de encargos».
Confrontado com o referido pedido, o concorrente declarou à entidade adjudicante o compromisso de, em caso de adjudicação da obra, assumir o fornecimento das redes provisórias de estaleiro (água e luz) durante a execução da empreitada.
Não restam muitas dúvidas de que as declarações que o concorrente fez constar da sua memória descritiva e justificativa – de que «foi considerado o fornecimento de água por conta do dono de obra» e «foi considerado o fornecimento de luz elétrica por conta do dono de obra» – contrariam frontalmente o disposto no caderno de encargos.
De facto, a declaração do concorrente, inserida na proposta, relativamente à imputação ao dono da obra daqueles encargos, não é equívoca, obscura ou de difícil interpretação.
Pode, isso sim, é ser de difícil compreensão.
«Porque diabo o concorrente declara uma coisa que contraria frontalmente o caderno de encargos?» diria ou terá dito para si próprio qualquer interveniente no processo.
O raciocínio empírico subsequente assentaria na exclamação «enganou-se, seguramente, só pode ter sido; até porque tem com certeza noção de que a manter-se o disse, a proposta será excluída! Deve ter sido engano, um lapso…».
E assim se formam muitas conclusões nos intervenientes em procedimentos de contratação pública.
O Tribunal chamado a julgar considerou, em última instância, que:
Na presente situação, considerado o teor das referidas declarações que constam da «memória descritiva e justificativa» nenhum vislumbre de dúvida existia que carecesse de ser esclarecida, pelo que não se justificava nenhum pedido de esclarecimentos ao concorrente.
Não era necessária qualquer informação ou explicação por parte do concorrente para que o sentido daquelas afirmações se tornasse, o que já era: claro, congruente e inequívoco.
Daí que seja de concluir que o pedido de esclarecimento não teve por escopo clarificar aquelas afirmações constantes da proposta apresentada.
O que o Júri do procedimento pretendeu com o «esclarecimento» que solicitou ao concorrente, e que o mesmo aceitou, foi dar-lhe a oportunidade de dar o dito por não dito na proposta inicial, alterando-a, de modo a conformá-la com as referidas exigências do caderno de encargos.
O Supremo Tribunal Administrativo tem sublinhado que o pedido de esclarecimentos constitui uma prerrogativa do Júri, a exercer quando se sinta inseguro quanto ao exato significado da proposta e, consequentemente, necessitar que a clarifiquem.
Por outro lado, os esclarecimentos prestados têm de incidir sobre os elementos já constantes da proposta pelo que os concorrentes não podem, a pretexto desta figura, corrigir ou melhorar a sua proposta ou aditar-lhe elementos novos por tal constituir violação do princípio da intangibilidade.
Com efeito, de acordo com o conteúdo normativo do princípio da intangibilidade das propostas, que é um princípio nuclear da contratação pública, os concorrentes não podem alterar o conteúdo da proposta até que seja proferido o ato de adjudicação ou até que decorra o respetivo prazo de validade.
Está vedado aos concorrentes que, designadamente, a coberto de “esclarecimentos” alterem as respetivas propostas durante a pendência do procedimento, integrando, modificando, reduzindo ou aumentando a pretensão ou a oferta inicialmente apresentada, seja para a tornar conforme aos parâmetros vinculativos constantes das peças do procedimento, seja para a tornar mais competitiva, sendo irrelevante que a alteração resulte da iniciativa dos interessados ou da iniciativa da entidade adjudicante.
Caso e fundamentação extraídos da apreciação do Supremo Tribunal Administrativo disponível aqui.
