A sério? Uma proposta? … ou antes uma proposta não séria?
A proposta é «a declaração pela qual o concorrente manifesta à entidade adjudicante a sua vontade de contratar e o modo pela qual se dispõe a fazê-lo». Assim o dispõe o artigo 56.º do Código dos Contratos Públicos.
A proposta é, em primeira linha, uma declaração de vontade, a manifestação da decisão séria e firme de celebrar um negócio jurídico. E o negócio jurídico é, ou não, concluído em função da interpretação da vontade real ou declarada dos declarantes, por interpretação precisamente das declarações negociais.
Resulta do n.º1 do artigo 236.º do Código Civil que «a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele».
O n.º 2 do aludido preceito legal acrescenta que «sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida».
Nos procedimentos de formação do contratos públicos, a proposta, por força do disposto no artigo 57.º, do Código, é sempre constituída – além do «formulário» do anexo I devidamente preenchido – pelos documentos indicados no regulamento. São esses documentos que corporizam as declarações negociais, que lhe oferecem substrato formal, que traduzem a firmeza, a seriedade, o sentido e alcance da vontade negocial dos interessados.
Recorrentemente, nos procedimentos de formação dos contratos públicos, são apresentadas «propostas» – pseudo-propostas – em que os respetivos subscritores, de uma forma clara, inequívoca e manifesta, não têm qualquer vontade de se vincular, muito pelo contrário!!!
São tantos os casos de operadores económicos que se limitam a apresentar, por exemplo, a lista de preços unitários, sem qualquer outro documento, oferecendo … um cêntimo para a execução do contrato!!!
... ou que nem esse documento apresentam, limitando-se a preencher um ou outro campo nos formulários da plataforma eletrónica…
…casos mais “sofisticados” há em que os (des)interessados até preenchem a lista de preços unitários, ultrapassando francamente o preço base (o que «garante a exclusão» da proposta), não juntando outros documentos exigidos que são sempre de elaboração demorada…
Todos percebemos o objetivo das pseudo-propostas: integrar a lista de concorrentes e, por essa via, conhecer o posicionamento dos seus concorrentes no mercado!
A questão que se pode formular, em situações como estas, será a seguinte: o operador económico que se apresenta desta forma ao procedimento está, de facto, interessado em celebrar o contrato com a entidade adjudicante?
Dir-se-ia que não!
Quem oferece um cêntimo para a execução de prestações que envolvem encargos de milhares de euros sabe, perfeita e conscientemente, que a sua proposta não será admitida, seja porque não apresentou os inúmeros documentos exigidos, seja porque o preço será, inevitavelmente, considerado anormalmente baixo!
Se assim é – e em muitos casos esta é uma conclusão evidente, linear, imediata, pública e notória – a documentação apresentada não corporiza uma proposta séria, mas uma proposta não séria, certo?
É que, nas situações mais limite, não chega a existir uma divergência entre a vontade do declarante e a declaração, simplesmente porque a vontade… não existe!
Como já sumariou o Supremo Tribunal de Justiça, em 17 de janeiro de 2017:
“I. A declaração de vontade negocial traduz um comportamento que, exteriormente observado, cria a aparência externa de um certo conteúdo da vontade negocial, caracterizando depois essa vontade como a intenção de realizar determinados efeitos práticos, com o objetivo de que os mesmos sejam juridicamente tutelados e vinculantes;
II. A declaração negocial tem, assim, como função primordial, a de exteriorizar a vontade psicológica do declarante, visando, dessa forma e sob a égide do princípio da autonomia privada, realizar a vontade particular através da produção intencional de um efeito e/ou de uma regulamentação jurídico-privada;
III. Contudo, o negócio jurídico só poderá operar de pleno, enquanto manifestação de duas (ou mais) vontades livres e esclarecidas, se as mesmas tiverem sido obtidas dessa forma, sem quaisquer deformações provindas de influências externas. Se a formação da vontade foi abalada por algum vício que a toldou, é óbvio que a expressão da mesma ficou viciada;
IV. Ocorrendo um vício, está em causa o lado interno da declaração, o qual conduziu a uma deformação da vontade durante o seu processo formativo: a vontade viciada diverge da vontade que o declarante teria tido sem a deformação.”
Acontece que, nestes casos, não haverá propriamente um vício de vontade – uma errónea representação da realidade – mas, isso sim, uma falta de vontade de propor (um desinteresse de se vincular) e uma intenção de recolher informação da concorrência, conduta pouco icompatível com o fim do procedimento!
Então, quando é manifesto que não existe vontade real de contratar, porque razão têm esses desinteressados de ser incluídos na lista de proponentes, quando não o são?
Será que a Autoridade da Concorrência poderia exercer aqui algum papel? Talvez…