Uma formalidade essencial ou o essencial já lá está?
O n.º 1 do artigo 58.º do Código dos Contratos Públicos indica que «os documentos que constituem a proposta são obrigatoriamente redigidos em língua portuguesa».
O n.º 2 daquele normativo autoriza a entidade adjudicante a admitir que alguns dos documentos relativos aos atributos da proposta ou aos termos e condições relativos a aspetos da execução do contrato não submetidos à concorrência pelo caderno de encargos possam ser redigidos em língua estrangeira, indicando os idiomas admitidos.
As entidades adjudicantes, quando recorrem a esta alternativa, não raras vezes exigem, no convite ou no programa do procedimento, que tais documentos redigidos em língua estrangeira sejam acompanhados de tradução devidamente legalizada, remetendo o incumprimento para a consequência determinada pelo artigo 146.º, n.º 2, alínea e) do Código dos Contratos Públicos: a exclusão da proposta.
O Tribunal de Contas vem sublinhando que o regime de exclusão das propostas é diversificado, devendo ser excluídas as propostas que não contenham os necessários atributos ou os termos ou condições exigidos, por aplicação do artigo 70.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do Código dos Contratos Públicos.
Porém, os documentos que se destinem a comprovar factos anteriores à data da apresentação da proposta ou da candidatura, nos termos previstos no artigo 72.º, n.º 3, podem ser supridos.
«Só desta forma, aliás, é possível articular o disposto no artigo 70.º, n.º 2, alínea a) do Código dos Contratos Públicos com a possibilidade de suprimento posterior da apresentação de documentos que se limitam a comprovar factos ou qualidades anteriores à data da apresentação da proposta ou da candidatura, previsto no artigo 72.º, n.º 3 do Código»
Todos os aspetos que concorrem para a aplicação do critério de adjudicação – e que correspondem, portanto, aos atributos exigidos – têm, todos eles, que constar da proposta de cada concorrente, indicando os elementos a que correspondem a cada um deles.
Diferente, sublinha o Tribunal de Contas, são os documentos que os sustentam: eles também têm de constar da proposta, mas não são atributos.
Coloca-se, então, a questão de saber se uma proposta com documentos redigidos em língua estrangeira não acompanhada de tradução devidamente legalizada deve ser imediatamente excluída ou, ao invés, ser o proponente convidado a suprir essa irregularidade.
«A exclusão de propostas por motivos simplesmente formais que em nada afetem, nem a estabilidade das propostas, nem a igualdade entre as partes, levando a que propostas melhores sejam afastadas com manifesto prejuízo do erário público e da qualidade dos serviços prestados não deve, à luz, nem do princípio da boa fé, nem do princípio da boa administração (artigo 5.º do Código do Procedimento Administrativo) ser aceite.
O Código dos Contratos Públicos, na revisão de 2017, criou, através da nova redação dada ao artigo 72.º, n.º 3, um mecanismo de suprimento das irregularidades das propostas (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto), visando a “recuperação da possibilidade de sanar a preterição de formalidades não essenciais pelas propostas apresentadas, evitando exclusões desproporcionadas e prejudiciais para o interesse público“.
Essa alteração foi ditada pela necessidade de se transpor o artigo 58.º da Diretiva n.º 2014/24/UE (do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva n.º 2004/18/CE), norma que admite com uma grande amplitude o suprimento de propostas com irregularidades, o que não acontecia na Diretiva n.º 2004/18/CE, que revogou.
Na sua transposição, a lei portuguesa foi mesmo mais longe, porque não se limitou a prever uma simples faculdade do júri, mas prescreveu um verdadeiro dever do júri de solicitar aos candidatos e concorrentes o suprimento das irregularidades das suas propostas».
«A entrega de um certificado em inglês, língua que o júri domina, pode ser suprida pela entrega do mesmo certificado agora traduzido em português, com exatamente o mesmo conteúdo, porque acompanhado de tradução, sendo, por isso, a proposta exatamente a mesma. Não se põe em causa, como é óbvio, quer o princípio da igualdade, quer o da concorrência».
O Tribunal de Contas considera, assim, inaceitável que uma proposta de preço mais elevada fique graduada em primeiro lugar apenas por não ter o júri pedido, como era seu dever, uma tradução autenticada de um certificado que lhe foi entregue em inglês, nos termos do artigo 72.º, n.º 3 do Código dos Contratos Públicos, porque daí não resultaria qualquer alteração da proposta em si.
A opção de não acionar o mecanismo do suprimento da proposta teve, só e apenas, uma consequência: uma perda financeira de dinheiro público…
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